Ainda que não seja polígamo, por entre a música que ouço nos tempos que correm há cinco mulheres que me mantêm fascinado: Aimee Mann, Beth Gibbons, Cat Power, Joanna Newsom, PJ Harvey. Polly Jean Harvey é porventura a relação com uma raiz mais profunda (poderia ser Beth Gibbons, se o encantamento radicasse em «Dummy», dos Portishead, e, na verdade, radica em «Out of Season»). Em «Down by the Water», de «To bring you my love» (1995), Polly Jean não se insinua, a sua voz ataca diretamente a presa e não permite qualquer resistência. Os álbuns seguintes atenuam o flirt com os blues, mas não desviam PJ de um rock construído entre provocação e encantamento. A penúltima obra - «Let England Shake» - reforça uma tonalidade elegíaca e analógica de uma obra que respira e, ao mesmo tempo, se afasta do seu tempo e «The Hope Six Demolition Project» confirma esta tonalidade. No Primavera Sound, no Porto, reencontro-a ao vivo e espero que o adjetivo «memorável» seja insuficiente.
Corria o ano de 1987 e, com 13 anos, era um adolescente atreito a impressões fortes. É neste ano que me confronto (e me impressiono) com o apelo desarmante do single Sign 'O' the times. A simplicidade musical e lírica da música é projetada num videoclip pontuado também pela simplicidade e povoado pelos versos que transpiram um certo ressaibo social. É evidente que esta aparente simplicidade ganha contornos de equívoco na obra de um artista que sobretudo se afirmou pelas vias da excentricidade, da fusão e da provocação. Distanciei-me na década de 90 da obra de Prince, porventura envergonhado desta música que fazia bater o pé, e perdi-lhe o rasto no século XXI. No entanto, quando regresso, é o álbum Sign 'O' the times que se impõe e a verdade é que há por aqui ideias musicais mais frescas do que em grande parte da música que por aí anda. Façam o favor de (re)ouvir, para além do single, The ballad of Dorothy Parker, Starfish and coffee, Strange relationship, I could never take the place of your man ou The cross.
O crepúsculo de 2015 segue ameno e impõe-se a colheita.
1. O trágico conflito que ensaguenta o século XXI andou pelas bulevares parisienses em 2015 e o terror, de novo, assaltou o quotidiano do cidadão anónimo, que paga um preço exorbitante de uma dívida que não lhe diz respeito.
2. O ano que ainda corre lembrou a efemeridade dos governos. O governo dos «usurpadores» sucedeu ao governo que quis que o nosso país acreditasse que o único caminho é exaurir a classe média e manter o contentamento dos mercados e dos pseudoinvestidores. De Passos e Portas não rezará a História, de Costa provavelmente também não.
3. As viagens de urbano para Gaia alimentaram um leitor cada vez mais conservador. As incursões para além da prosa e da poesia portuguesa do século XX, vão rareando e, neste sentido, de novo as páginas de Aquilino («Volfrâmio»), Mário de Carvalho («Novelas Extravagantes»), Torga («Contos e Novos Contos da Montanha» e «Senhor Ventura»), Sena («Antigas e Novas Andanças do Demónio»), Cardoso Pires («Balada da Praia dos Cães»), Lobo Antunes («Segundo Livro de Crónicas»), Agustina («Fanny Owen») e Vasco Graça Moura («Poesia Reunida»). Para além do conservadorismo e deste rol de companhias recomendáveis, «A Condição Humana», de Malraux (traduzido e prefaciado por Sena) e as «Crónicas», de Dylan.
Corre junho, insinua-se o verão e a indigência que impõe a divagação:
1. Raiz do que somos, a Grécia transfigurou-se em bomba-relógio que ameaça estilhaçar a Europa que conhecemos. Tsipras fez um sacrifíco aos deuses e estes revelaram-lhe a faceta demoníaca do FMI. Talvez não fosse necessário o sacrifício.
2. Por cá, na cabeça da Europa, as promessas foram rasgadas. O povo português confronta-se agora com as garantias da coligação Passos & Portas, com as causas do Costa e com as dívidas por pagar. Os avisos externos multiplicam-se: o desvio da austeridade salvífica será trágico, é necessário continuar a cortar, sobretudo naqueles que ainda não devolveram as casas aos bancos. 2015 é um labirinto. A saída pelo lado da coligação é uma garantia de continuidade da incompetência, da falta de transparência, do corte cego na despesa, de perseguição da classe média. A saída pelo lado socialista desenha-se como uma ameaça de regresso à incompetência anterior a este governo, à desgovernação, ao delírio das grandes obras.
3. Jorge Jesus fez as malas e partiu. A viagem foi curta. Mudou-se para Alvalade. A euforia encarnada após a conquista do bicampeonato transformou-se em ressentimento, que é injusto. A miséria sportinguista, atenuada parcialmente pela Taça de Portugal, transformou-se em euforia. O futebol é uma contínua reflexão sobre o conceito de efemeridade.
Eis o que me irritou de modo mais acutilante em 2014.
1. A bandeira portuguesa na lapela do casaco do Coelho e a evidência de mais um ciclo legislativo irrevogavelmente perdido.
2. A merda de cão nos passeios de Aveiro e Gaia que me obriga a caminhar com o olhar no percurso dos meus pés.
3. Entre a PACC e os concursos de colocação de docentes, o desvario.
4. As carvalhices do Bruno - após os tiros de pólvora seca em todas as direções, o tiro no pé.
5. A ópera bufa em que se tornou a discussão de final de ano: CR ou Messi?
Vislumbra-se 2015 e impõe-se a memória de 2014.
1. O recluso 44 do estabelecimento prisional de Évora é uma trágica evidência do pântano que nos engole. A descrença de um país no bando de oportunistas que ciclicamente assola o Palácio de São Bento e imediações enraíza-se e pontua o limbo em que Portugal se encontra.
2. Os festejos portistas e sportinguistas em 2014 concentraram-se nas derrotas do Benfica nas competições internacionais, o que diz tudo sobre a supremacia encarnada pelo território indígena. Não vai ser fácil voltar a ver o ataque do Benfica agitado por jogadores do calibre de Enzo, Gaitán, Markovic, Lima e Rodrigo.
3. Por entre tintos e brancos (e rosés), um autor impressionou: Anselmo Mendes. Um discurso que respira vinho, vinhos que inspiram discursos - experimentem o Curtimenta 2011 ou o Parcela Única 2012. A leste, o Douro e no segundo semestre de 2014 reforcei o meu entusiasmo pelos tintos Poeira e pela Quinta da Casa Amarela, em particular o Poeira 2011 e o Quinta da Casa Amarela Reserva Tinto 2011.
4. No reino da sétima arte, é verdade que recentemente me diverti com o JA a ver o delírio de «Penguins of Madagascar», porém, foi em «The Grand Budapest Hotel», de Wes Anderson, que me reencontrei com a essência do cinema e foi em «The Wolf of Wall Street» que constatei um novo fôlego de Scorsese.
5. Na música e na literatura, 2014 constituiu-se como mais uma etapa nas minhas empatias artísticas - Cave e Lanegan nas notas, Aquilino e Mário de Carvalho nas letras.
1. Há longo tempo que não blogo e entretanto choveu.
2. Deitar cedo e cedo erguer, de acordo com a vox populi, dá saúde. Os sessenta e cinco quilómetros que me separam do meu local de trabalho tornaram-me um homem saudável e divorciaram-me positivamente da pseudorrealidade fabricada pela comunicação social, do naufrágio de um país incapaz de despejar uma elite que, apesar de rasgar todos compromissos assumidos com uma sociedade exangue, delirantemente se reconhece legitimada pelo voto popular.
3. A demissão de Miguel Macedo, como todas as demissões de senhores ministros e secretários de estado nesta coutada, é mais uma evidência do pântano. Travestida como exercício de honorabilidade do responsável político, não passa de mais uma exalação deste odor pútrido que envolve uma classe que corporativamente se eterniza no poder através da encenação de um conflito que tem como bonifrates PSD e PS.
4. Celebrada pelo salazarismo, a nossa brandura tem dado imenso jeito aos governantes de um país onde, como decretou a nossa ministra das finanças, não abundam os ricos. No entanto, não se iludam, os «[...] humilhados, pela noite, / Para a vingança aguçam os punhais.»
Três anos nos separam do último campeonato celebrado e parece que foi uma eternidade. Humilhados pelo Porto de Villas-Boas, incapazes de confirmar a nossa superioridade perante o Porto de Vítor Pereira, também eu me incluo nos descrentes em relação à continuidade de JJ no início da presente época. No momento da festa, penitencio-me pela falta de fé. No entanto, permito-me relevar as diferenças que marcaram a diferença este ano:
Que a festa continue.