Os dias quentes sucedem-se aos dias frios, o banho da chuva que cai é substituído pelo banho na refrescante água salgada do Atlântico e as vacilações do clima encobrem a perplexidade perante esta vida lusitana.
O senhor Nick Cave (devidamente acompanhado pelas más sementes) desembocou na noite de ontem no Coliseu do Porto e o que mais impressionou foi a barragem (que garantiu a abundância de electricidade) que antecedeu a foz.
Dig!!! Lazarus Dig!!! foi o manancial do concerto. A implosão de Night of the Lotus Eaters (Get ready to shield yourself) abriu a noite e, em sentido inverso, serviu de preâmbulo à explosão de Today's Lesson, à garantia (dada por um tipo de bigode suspeito) de que we're gonna have a real good time e à ameaça da Red Right Hand.
Nick Cave & The Bad Seeds não desiludiram o público presente (não esperem de ZD, um adepto caveano de longa data, um exercício crítico rigoroso), no entanto, foi notório que as comportas do espectáculo necessitam de algumas afinações. As entradas e saídas falhadas de algumas músicas, as dificuldades de Cave nas canções mais palavrosas (caso de Papa Won't Leave You, Henry), a desistência de Into my Arms após os dois acordes iniciais foram pormenores que o público ignorou, atordoado com as descargas eléctricas da guitarra de brincar do eremita hendrixiano Warren Ellis e rendido a momentos como os de The Ship Song, Moonland, Deanna, Tupelo, Straight to You, [The bad motherfucker] Stagger Lee.
Recompensado com uma versão inaudita de Lovely Creature (the first and the last time we'll play it live para ouvidos ingénuos), o público saiu do Coliseu com os loops de We Call upon the Author a circular perigosamente no cérebro, mas reconfortado por Nick Cave prezar os palcos portugueses e o regresso ser iminente.
Obri[fuckin']gado.
Na antologia cinéfila e danada de 2007 teria que constar Control de Anton Corbijn, caso ZD houvesse visionado esta obra no mencionado ano. Tal não aconteceu. Control apenas chegou à sala de cinema das Barrocas na passada quinta-feira, contudo, antes tarde que nunca.
Control parte da autobiografia de Deborah Curtis (Touching from a Distance) e centra-se no enigma Ian Curtis. A fotografia persegue a sombra da música e a luz surge circunstancialmente dolorosa (conferir a viagem para um concerto em Londres). Sam Riley recria o espectro de Ian Curtis - o autómato, as síncopes, a fragilidade, o desespero - oscilando entre a figura maternal de Samantha Morton e a volúpia de Alexandra Maria Lara (Love will tear us apart).
O clímax (o suicídio aos 23 anos) surge contido (controlado) e, no plano final, a libertação possível.
A inconstância do tempo meteorológico propicia a aventura do percurso a pé para quem anda de comboio. ZD, aventureiro contido, não enjeita o desafio e parte para a estação sem guarda-chuva.
Da inconstância do futebol resulta a angústia de ser benfiquista transfigurada em alegria efémera, após 45 minutos, e a alegria transformada em desistência no final dos 90 minutos. Chegou a altura de encerrar a loja encarnada até à próxima época e pensar no trespasse, senhor Vieira.
Viva. O ministério da educação aproximou-se da plataforma sindical de professores e alcançou-se o eventualmente almejado entendimento: o processo de avaliação de professores segue timidamente e Maria de Lurdes descalça as botas (com cuidado, não vá partir os pés de barro).
Viva. O Benfica levou três da Académica, já saiu do pódio no campeonato e foi encontrado na morgue do hospital pelo Jorge Nuno Pinto da Costa (num país onde a justiça funcionasse o mais provável seria Pinto da Costa encontrar algo no interior dos calabouços de uma prisão). Esta noite há taça em Alvalade e a eliminação será o estertor do eliminado.
Viva. Ribau Esteves já tem arqui-rival: a supostamente nova namorada do engenheiro Sócrates. Não foi fácil encontrar uma rival com a insignificante dimensão do Ribau.
Fulgurante, a vida corre - Oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara. (José Saramago, Memorial do Convento)
O apego clubístico - em Portugal enraizado na paixão do futebol - permite aureolar figuras sombrias. Ocorre num passado recente o nome de Vale e Azevedo, num passado mais distante o de Jorge Gonçalves, no passado, presente e, provavelmente, no futuro o de Jorge Nuno Pinto da Costa (poder-se-ia sair da esfera do encarnado, verde e azul e citar nomes como Valentim Loureiro e Pimenta Machado). Em determinado momento, qualquer um deles granjeou a simpatia de uma massa humana mais ou menos significativa, dada a sua posição nos desígnios de certo clube. Poderia mesmo o respectivo carácter suscitar leve desconfiança, porém o apego clubístico transformava-se em miopia (não se fale em cegueira) e garantia a continuidade de um poder dependente da caução dos adeptos.
Pinto da Costa, no entanto, deve ser destacado como primus inter pares. General supremo e incontestado do Futebol Clube do Porto nas últimas décadas, laureado pelos títulos conquistados a nível nacional e, sobretudo, internacional, cruzado das reivindicações de um Norte injustiçado, mestre da ironia saloia, Pinto da Costa soube construir um reinado capaz de desvanecer episódios turvos (Guímaros, irmãos Calheiros, guardas Abéis...).
Os últimos tempos têm sido menos propícios e, após o remoque aos cotovelos do Cardozo, Pinto da Costa não tem tido tempo para cultivar o sarcasmo, demasiado ocupado com as reuniões com os advogados.
A estratégia da defesa passa por reduzir tudo a ficção: Maria José Morgado não passa de um imaginário arcanjo vingador, Carolina Salgado improvável reencarnação de Brutus e respectivo punhal, Augusto Duarte ocasional visita dos aposentos do presidente do FCP e Pinto da Costa inocente vítima, atropelada por um esquema maquiavélico para colocar um ponto final no domínio desportivo do dragão, outro ser imaginário.
Pobre Pinto da Costa, pobre Futebol Clube do Porto, pobre Miguel Sousa Tavares.
O vento frio e seco conduziu ZD na semana passada a Salamanca, cidade de estudantes situada nas margens do rio Tormes. ZD já por aqui havia passado numa noite de Inverno e cravada na memória ficara a monumentalidade da Plaza Mayor, portanto o regresso impôs-se.
Salamanca emerge da placidez do campo onde vacas e ovelhas pastam. O centro da cidade é evidente pelo seu peso histórico e as tabuletas apontando na direcção dos hotéis multiplicam-se.
Na descoberta da cidade, a Plaza Mayor, esplendorosa praça barroca erigida na primeira metade do século XVIII, é a referência para os diferentes percursos que permitem que o encantamento da cidade se abata sobre o ocasional visitante. A Casa de las Conchas (onde as conchas da fachada atenuam a austeridade gótica), a Catedral Vieja (fascinante) e a Catedral Nueva (imponente edifício que também sofreu com o terramoto de Lisboa de 1755), a Universidad (a magnífica fachada é um quadro desenhado com o cinzel na pedra), a Casa de Lis (museu onde o ferro invade a pedra e que abre as portas para a Arte Deco e a Arte Nouveau) são evidências deste encantamento.
À noite, a Plaza Mayor permanece a referência para a integração na movida noctívaga. Evitar restaurantes que confundem um bife com uma fatia de fiambre não é simples, por conseguinte as tabernas tornam-se locais mais apetecíveis para descobrir os tintos da Rioja ou da Ribera del Duero.
No regresso a Portugal, breve incursão nas Terras de Toro. A muy noble, muy antigua y muy leal Ciudad de Toro é uma terra de vinho, porém rica em história e arte. A atenção de ZD centrou-se no vinho. Uma visita à Bodega Liberalia e a degustação de tintos jovens e crianza realçam o valor das cepas de um século que trazem a Tinta de Toro e a qualidade dos vinhos produzidos.
Já por caminhos transmontanos, ponto final (talvez se justificasse o ponto de exclamação) neste périplo com uma sumarenta posta mirandesa no restaurante A Lareira de Mogadouro.
Segue-se o Memorial do Convento.